Quando empreendemos uma viagem, breve ou longa, preocupamo-nos em planear tudo, calcular com poucas margens de erro, ponderar todos os imprevistos que possam surgir. Alguns de nós deixam espaço para surpresas, mantêm o espírito aberto ao novo que possa acontecer sem ter sido imaginado sequer.
A maior viagem da nossa vida é ao interior de nós próprios, em busca de um espaço que precisa de ser visitado e ocupado. Raramente, nos preocupamos com a planificação desta viagem; raramente, marcamos o dia para a começar, as paragens, os reabastecimentos, os descansos, os consertos. Entrar no nosso interior é viver em função de um projeto, que pode ser alterado em qualquer momento por causa dos outros, pelo Outro.
Os acontecimentos, as circunstâncias, os relacionamentos, vão-nos afastando de nós mesmos. Distraídos, seguimos viagem sem contemplar a paisagem, sem a apreciar devidamente, sem a questionarmos, sem nos deslumbrarmos.
Viver é um constante deslumbramento perante todas as coisas e pessoas, lugares e situações que nos cercam: a flor que desabrocha, o tufo de relva que nasce no meio das pedras, o canto das aves que serpenteia pelos ares, o sorriso dos velhinhos caldeado de memórias, as gargalhadas cristalinas das crianças nas suas pequenas preocupações, a lágrima da mãe embevecida ao contemplar o filho, o olhar do pai que sente o filho a apertar-lhe o dedo pela primeira vez, o céu estrelado numa noite de Inverno, a brisa que aconchega numa noite quente de Estio.
Vivemos distraídos como os vizinhos de Noé, como o rico que não deu conta da existência próxima de Lázaro. Alheados da realidade circundante, fechamo-nos no nosso mundo, relativizamos o que é exterior, empolamos o que nos acontece (especialmente, se for mau).
Vivemos absorvidos pelo tempo, pelo ter, pelo mostrar, pelo aparentar, pelo fazer. Não paramos para ser, para buscar em nós a paz que o mundo teima em tirar-nos. Queixamo-nos das lutas diárias, mas não nos apercebemos que deixámos a nossa viagem a meio. Estamos connosco, mas vivemos fora de nós. Procuramos recolher muitas informações, colecionar conhecimentos, armazenar fotos, mas não buscamos conhecer a nossa verdade, guardar espaço para o silêncio, para a escuta.
Não nos sentamos à sombra da árvore, nem percebemos a visita de Deus. Choramos o que não temos e não agradecemos tudo o que já nos foi concedido. Somos apressados, ávidos e não temos tempo para a intimidade, para entrar no nosso quarto interior e repousarmos. Somos simultaneamente insaciáveis mas fartos de tudo. Procuramos exteriormente compensações para as nossas frustrações e não nos encontramos no nosso infinito concreto: o nosso coração.
Nesta viagem, precisamos de ir sem empecilhos, sem bagagens, que atrapalhem. Precisamos da nossa autenticidade e do desejo de conhecer um território único.
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