Ao entrarmos em contacto com o nosso eu interior, entramos nas profundezas de um castelo interior, percorremos os corredores mais empoeirados, mais escuros e penetramos nos aposentos mais encardidos, onde para abrir aquela porta precisamos utilizar todas as nossas forças e empurrar.
A nossa personalidade, como temos visto ao longo deste mês, é construída à medida que vamos vivendo a nossa vida, não é estanque, embora tenha componente hereditária. Neste sentido, desde o ventre materno estamos em processo de construção da nossa identidade. E se eu não fui desejada pelos meus pais? Se a minha gravidez não foi planeada, nem esperada por eles? Eu senti essa rejeição/medo dos meus pais, essa apreensão da minha mãe e, talvez, já tenha ficado um sentimento de rejeição dentro de mim. Na minha primeira infância, como me senti? Que emoções ficaram gravadas no meu íntimo? Que associações fui fazendo? Na segunda infância, que marcas trago em mim? Relacionamentos com as figuras de referência? Senti-me amada, protegida? Na escola primária, que experiências me marcaram? Foi um tempo bom, de descobertas? E enquanto adolescente? Que vivências tive? Como reagiram os meus pais às minhas experiências de testar limites? Foram presentes na minha vida? E no início da vida adulta, incentivaram-me a confiar em mim e avançar nos meus sonhos, no meu percurso?
Cada momento da nossa vida teve uma marca e está selado com uma emoção. Sobretudo, nos primeiros anos de vida, onde as memórias são inexistentes ou muito fracas, elas existem em forma de emoção. Essas emoções que vivi foram moldando a minha personalidade, as minhas expetativas, em relação a mim, e aos outros, as minhas reações às situações. Como é importante aceitar o que sinto, o que vivo e vivi.
Uma senhora que acompanhei trazia dentro dela um furacão de emoções que não sabia interpretar e não queria confrontar-se com essa fragilidade. Mantinha resistência em aceitar a sua verdade. Nas sessões, sempre que contava um acontecimento marcante do seu dia-a-dia, eu devolvia-lhe a possibilidade de ter sentido raiva, ela negava e corrigia “Não! Raiva eu não sinto, zangada talvez, mas raiva não!”. Comecei a estranhar e a perceber que tinha uma grande relutância em aceitar a sua raiva. Numa sessão, confrontei-a com a minha reflexão e expliquei que a raiva é uma emoção básica e tem uma função evolutiva clara, pois providencia os recursos necessários, para lidar com uma situação frustrante ou hostil. Isto é, perante uma situação concreta de perigo ou desafio, a raiva ajuda-nos a aumentar a ativação de recursos, aumenta a frequência cardíaca, o tónus muscular, a amplitude respiratória, a adrenalina no sangue, com o intuito de nos preparar para a ação. Portanto, a raiva é, igualmente, protetora, vai impulsionar-nos a reagir, defender. E caso ela não nos ajude, entra em ação a tristeza (que nos ajuda a parar, refletir, elaborar a situação, afastar um pouco para pensar).
A raiva enquanto emoção ela não é boa, nem má, todas as emoções são amorais, é a minha reação perante a raiva que pode ser positiva ou negativa. A senhora ficou surpresa e começou a pensar na sua história e a lembrar-se de situações, onde reagiu de acordo com essa emoção, onde partiu copos e pratos com essa fúria, rasgou cartas de uma grande amiga que a desiludiu e foi assumindo a sua emoção, dar-lhe nome e associá-la a acontecimentos da sua história de vida. Entretanto, foi trazendo outras situações menos explosivas, mas onde começou a perceber uma atitude mais grosseira e agressiva, partilhou o seguinte “ontem estava a chegar ao escritório e (devido a uma situação que tinha vivido lá) percebi que atirei com a pasta com força para cima da mesa”. Parece que, entretanto, começou a conseguir “descodificar” certas reações e atribuir-lhes um nome. Com esta “descoberta” aconteceu uma libertação e começou, nas sessões seguintes, associar ideias e disse “Penso que trago uma ferida em mim, de rejeição e medo de ser rejeitada e isto pode ser a origem da minha raiva”. O sentimento de rejeição dela tem origem na tentativa de aborto, por parte da mãe, mas desejada pelo pai e avó materna, contudo, a mãe não conseguiu concretizar e fugiu da clínica. Esta senhora investe muito nas pessoas e relacionamentos, coloca muita esperança no outro e, quando as coisas não correm como esperado, surge a raiva num ápice e a reação é essa.
Nas últimas sessões, a senhora já dizia “Parecia que vivia numa panela de pressão dentro de mim. Era muita responsabilidade dentro de mim… de corresponder ao esperado… sinto-me mais livre e segura de mim, mais serena, com menos stress e só posso confirmar a frase ‘A Verdade liberta’”. Pois é, a verdade, a nossa verdade, quando faço esse caminho de descoberta interior, aceito quem sou e tento modificar e trabalhar o que carrego de menos positivo, essa verdade liberta.
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