Há muitos anos atrás, aprendi pela experiência vivida em casa dos meus pais que o lugar dos pais idosos é junto dos seus filhos. Lembro-me de ouvir vezes sem conta que “o lar/ asilo é para quem não tem filhos”.
Sempre que, na escola, tinha que discriminar as pessoas do meu agregado familiar, dizia/escrevia “pais, irmão, avós”. Desde que me conheço como pessoa sempre me lembro das minhas avós na nossa casa: a paterna, figura amorosa, com muitas limitações, pois a cegueira foi-se apoderando dos nossos dias, mas cheia de sabedoria, paz e muito bom humor; a materna, figura imponente, trabalhadora, autoritária e exigente.
A presença de ambas era algo natural: uma e outra também ajudaram a moldar a pessoa que hoje sou. Foram amadas, cuidadas, sempre em casa dos meus pais até ao dia em que partiram para casa do Pai, a paterna em Dezembro de 1990, a materna em Maio de 2000.
Hoje, vivo uma situação bem semelhante. Cuido dos meus pais, em minha casa. Vieram para festejar, em família, os 80 anos do meu pai e os 55 anos de matrimónio e uma infecção pulmonar do meu pai levou-o para o hospital, momentos angustiantes e terríveis, na expectativa de qualquer notícia que nos desse alento e esperança. Vivemos muitos dias em suspenso. Entretanto, a minha mãe deu uma queda e fracturou um ombro. E as correrias aumentaram. Foi necessário arranjar tempo para visitas hospitalares (para o meu pai), consultas e sessões de fisisoterapia (para a minha mãe). E o tempo foi passando, o meu pai veio para casa e foi preciso reorganizar uma nova realidade: vinha dependente de uma máquina que lhe fornecia o oxigénio necessário para viver. A minha casa tornou-se um entra e saí de pessoas, os assistentes que vinham trazer oxigénio três vezes por semana, as enfermeiras que vinham cuidar da ginástica respiratória e a asssistente social que vinha averiguar se eu tinha condições para cuidar dos meus pais.
Dois anos e sete meses depois, continuo a correr de um lado para outro, organizando-me entre os pais, os netos, os filhos e o trabalho. Vivo o crescimento dos netos, as suas conquistas, vivo o declínio dos meus pais, o seu enfraquecimento, as suas birras, as suas vontades. Reparto-me entre o que eu acho que é melhor para uns e para outros e o silêncio de deixar viver cada momento e cada fase. Vejo as cumplicidades entre os meus netos (irmãos ou primos), as suas brincadeiras e vejo as cumplicidades entre os meus pais (57 anos de matrimónio): descubro que estes me tentam enganar, que fazem as suas vontades (mesmo que às vezes coloquem a sua saúde em risco).
É difícil viver olhando para as fragilidades daqueles que me deram a vida. É difícil entrar neste universo em que sinto que eles se fecham a cada dia. É difícil conciliar tanta coisa em 24h e dar-lhes qualidade de vida.
É viver no avesso da vida: os pais tornam-se filhos pelas suas dependências mas não se conseguem moldar como os filhos. É um patamar bem diferente.
É viver preocupada com as refeições, os banhos, as saídas, as quedas, as noites, um sem número de pequenos/grandes obstáculos para vencer. É necessário lutar com uma concorrente de força, a televisão e os seus programas melodramáticos, que os vai pondo a viver num mundo meio alienado, mas que eles (vá-se lá saber porquê) gostam.
Graças a Deus, que tenho os meus pais comigo: posso olhar para eles e rever uma parte significativa da minha história. No entanto, é o confronto diário com a recta final, que neste caso, ninguém quer viver.
A vida enrola-se num turbilhão de sentimentos onde todos são possíveis e legítimos. O tempo anda ao contrário em ritmo acelerado na vagarosidade dos seus dias.
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