Um único pai

Têm sido muitos os elogios à encíclica Fratelli tutti. Até agora, as críticas que li vêm apenas de setores católicos também (cada vez mais) críticos do Papa Francisco.

Um desses elogios proveio da Maçonaria espanhola e italiana (loja do Grande Oriente), que enalteceu o facto de a encíclica aderir ao seu ideal de fraternidade universal, superando a posição tradicional da Igreja Católica, que desse ideal se distanciava. Eis, então, um motivo para tais setores criticarem a visão da encíclica, acusando-a de refletir esse ideal de fraternidade maçónico, puramente humano e horizontal, sem abertura a Deus ou com equiparação de todos os credos religiosos.

Essa crítica não tem, porém, razão de ser.

Na leitura da encíclica Fratelli tutti deverá ser salientado, antes de tudo, o que nela se afirma a respeito do fundamento último da fraternidade: «Sem uma abertura ao Pai de todos, não pode haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade. Estamos convencidos de que só com esta consciência de filhos que não são órfãos, podemos viver em paz entre nós» (n. 272).

Mais profundamente, afirma também a encíclica (n. 85): Quem acredita que Deus ama cada ser humano com amor infinito confere-lhe uma dignidade também infinita; se Cristo derramou o seu sangue por todos, ninguém pode ser excluído do seu amor universal; a fonte suprema desse amor universal é a própria vida íntima de Deus, uma unidade de três Pessoas que é origem e modelo de toda a vida comunitária.

Citando a encíclica Centesimus annus, de São João Paulo II, afirma Francisco: «Se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. (…) Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder.» (n. 273).

Depois de relembrar que a Igreja valoriza o que de verdadeiro e santo existe nas outras religiões, Francisco esclarece que, como cristãos, «se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados» (n. 277).

É certo que na encíclica não é dada a estas verdades tanto destaque como é dado a questões de ordem social e política, as quais também têm tido mais eco na comunicação social. Penso que é assim porque o propósito do Papa, enunciado logo na introdução da encíclica, é o de com esta lançar pontes entre fiéis de todas as religiões, crentes e não crentes. Por isso, aborda questões com que muitos não cristãos possam identificar-se (e, de facto, se têm identificado). Mas de modo algum estas verdades, relativas ao fundamento último da fraternidade, são ocultadas ou desvalorizadas.


Pedro Vaz Patto, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz