“Sinto revolta e impotência”, desabafa religiosa portuguesa face às “atrocidades” em Cabo Delgado

“Rezamos pelas populações vítimas de uma guerra silenciosa e de atrocidades de extrema desumanidade e violência.” Começa assim a entrevista à Fundação AIS da Irmã Mónica da Rocha, da Congregação das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima, em missão há três anos em Lichinga, Moçambique. A religiosa portuguesa fala à Fundação AIS sobre Cabo Delgado, a província situada a norte deste país africano e que, desde Outubro de 2017, tem sido palco de ataques terroristas que têm vindo a ser reivindicados pelo Daesh, o grupo jihadista Estado Islâmico.

O facto de a localidade de Lichinga, que pertence à província de Niassa, estar a centenas de quilómetros de distância das zonas mais afectadas pelos ataques terroristas e de haver ali já centenas de deslocados, diz bem da intensidade da violência e do desespero das populações. Para a Irmã Mónica, todos os deslocados estão no centro das suas preocupações. São pessoas sem nada, que dependem totalmente da solidariedade. São pessoas de mãos vazias. A irmã fala deles como os “sem voz”, “os que são as vítimas, os que morrem decapitados, os que, apesar de conseguirem fugir, perderam a família, os seus bens”, os que agora, “apesar das promessas não encontram ajudas nem apoios para recomeçar”.

Esta entrevista à Fundação AIS ocorre ainda no rescaldo do ataque terrorista do dia 24 de Março à vila de Palma e que trouxe a questão de Cabo Delgado para o centro da atenção mediática em todo o mundo. Para a Irmã Mónica, esse impacto deveu-se apenas ao facto de “entre a população atingida” estarem cidadãos estrangeiros e por que o ataque ocorreu nas imediações do megaprojecto de exploração de gás da petrolífera francesa Total. “Infelizmente, este foi mais um de muitos ataques que nos últimos anos têm devastado esta província de Cabo Delgado. E muitos mais virão, com a diferença de poderem não ter a visibilidade que este teve a nível mundial”, diz a religiosa, lançando uma pergunta: “Até quando?” “Até quando e quantas mais pessoas precisam de morrer e fugir para que se coloque fim a estes conflitos armados e a população possa recomeçar do zero reconstruindo o destruído?”

RELATOS BRUTAIS
Responsável pela Casa do Imaculado Coração de Maria em Lichinga, a Irmã Mónica, natural da vila de Arouca, mostra-se desalentada e diz que sente “revolta e impotência perante esta realidade”, descrevendo Cabo Delgado como “um paraíso de riquezas naturais e de uma beleza única transformado num cenário real de destruição e de corpos espalhados no chão e muitos deles decapitados…”. Na zona de Lichinga há já dois campos de deslocados. Ficam situados em Malica e em Sanjala. Para se chegar ao mais distante são precisos cerca de vinte minutos de viagem de automóvel. Malica tem, actualmente, mais de três centenas de pessoas e o campo de Sanjala cerca de 100. A irmã explica que todos estes deslocados são pessoas que fugiram dos ataques terroristas e que “recebem alguma ajuda do governo”. Ajuda que tem sido, no entanto, insuficiente “para colmatar todas as suas necessidades”. O que tem valido é o espirito de solidariedade dos moçambicanos, apesar das condições extremamente difíceis da vida neste país. Várias famílias da região receberam também deslocados, assim como a própria paróquia. “Temos sete famílias num total de 50 pessoas”, explica a irmã. “Estas famílias [acolhidas pela paróquia]não estão a receber apoio do governo e vão sobrevivendo com as ajudas da população e com a nossa ajuda. Mensalmente tentamos dar a cada família um cabaz com alimentação básica e roupa, calçado, material escolar e uniformes. As necessidades mais urgentes neste momento, para além da alimentação, são a aquisição de terrenos para cultivo e para a construção de casas.”

Estes deslocados são pessoas que têm agora de recomeçar as suas vidas do zero depois de uma experiencia traumática que vão, aos poucos, relatando às religiosas. “São relatos de extrema violência”, conta a irmã. “As pessoas são decapitadas e enquanto uns são selecionados para morrer, outros são mandados embora para contar o que viram.” São histórias brutais de desumanidade. Como o caso de algumas pessoas de uma mesma família que se esconderam “numa pocilga de porcos e aí permaneceram até que os insurgentes matassem os que tinham capturado”. Os que tinham sido capturados eram conhecidos ou familiares. “E eles a verem o pai, o marido, o vizinho, o amigo, a serem decapitados e a permanecerem em silêncio para tentarem salvar a vida…” São memórias que dificilmente serão alguma vez esquecidas. “Quem aqui chega diz não querer voltar, vive angustiado sem saber de notícias de quem lá ficou [em Cabo Delgado]. O medo e a falta de liberdade de expressão geram o silêncio, mas a mágoa, o desespero e a revolta transparecem no olhar de quem tudo perdeu mas que se agarra à vida com fé e com muita esperança.”

PEDIDO DE AJUDA À AIS
A esperança de que fala a Irmã Mónica passa por estes deslocados conseguirem um pedaço de terreno para construírem um abrigo e para a agricultura. É a machamba. “A vontade de trabalhar e de recomeçar é muita mas sem apoio [isso] não é possível”, reconhece a irmã. “O que pedem é muito para quem não tem nada mas é pouco para quem tem direito a recomeçar…” Além do apoio aos deslocados, as irmãs são responsáveis em Lichinga por um jardim-de-infância, pela pastoral paroquial e apoio aos mais necessitados da comunidade local. Algumas destas actividades tiveram de ser suspensas por causa da pandemia do coronavírus, mas o apoio aos deslocados transformou-se na prioridade das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima. Para assegurarem esse trabalho, as irmãs precisam também de ajuda. “Faço um apelo à solidariedade de todos vós, benfeitores e amigos da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre e a todos os que se sensibilizam por esta causa humanitária: ajudem-nos a ajudar este povo sofredor a reconstruir a sua vida.” Uma ajuda urgente até porque, segundo a previsão da Irmã Mónica, “o número de deslocados na província do Niassa [vai] aumentar”.

Há três anos a viver no norte de Moçambique, a Irmã Mónica da Rocha explica que ela própria já mudou após o contacto diário com esta realidade. O povo moçambicano, diz a irmã à Fundação AIS, “marca-me todos os dias pela sua capacidade de resiliência, pela alegria e pela partilha. Com o pouco aprendemos a dar valor ao que temos e a ser gratos”. “Reforço o meu apelo a cada um de vós: em nome do António, do Inácio, da Magui, da Catarina e de muitos, muitos outros [deslocados]… Obrigado!”

Departamento de Informação da Fundação AIS | ACN Portugal