Ser cristão hoje é mais uma “questão de amor”: Dar e ficar contente

Nesta peregrinação de junho em que se celebra a segunda aparição de Nossa Senhora aos Pastorinhos, D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, na sua homilia refere uma obra de misericórdia essencial neste tempo de pandemia em que vivemos: a “obra de misericórdia que se tornou urgente e imprescindível a todos nós, que é: dar de comer a quem tem fome (Mt 25,35)”.

 

 

Na nossa vida, há coisas que aprendemos na escola, outras que aprendemos com os amigos, outras com a dureza da experiência acumulada; umas aprendemos pela internet e outras pela comunicação social; há coisas que aprendemos com a sabedoria dos mais velhos, outras que aprendemos durante este tempo de pandemia…, mas há uma coisa que só pode ser aprendida no colo de uma mãe: a verdadeira dimensão do amor! Na mãe que nos deu à luz e em tantas mães que o são no acompanhamento, na proteção e nos testemunhos de vida. É nesse colo, onde sentimos pela primeira vez o calor, o odor e o tato que nos comunica o amor mais belo, que é o amor materno. Se hoje estamos aqui, é porque reconhecemos que este colo maternal da Senhora de Fátima continua a ser para nós, uma autêntica «escola do amor»!

No Evangelho que escutamos, diante da multiplicação de leis e regras que absorviam os judeus, Jesus deixa-nos um mandamento fundamental. É fácil deduzirmos qual é, pois tudo se resume a uma questão lógica: se Deus é amor em si mesmo (1Jo 4,8,) e se ele enviou o Seu Filho ao mundo por uma questão de amor pelo homem, então o único mandamento que Ele poderia deixar-nos em herança só pode ser este: o mandamento do amor (Jo 15,17). Deus só nos pede que sejamos como Ele, isto é: uma comunidade de amor entre todos nós, tal como Deus é amor em si no mistério da Sua Trindade.

Ser cristão hoje é mais uma “questão de amor” do que “um assunto doutrinal”. E das 14 obras de misericórdia que aprendemos com a nossa catequista na infância, há uma obra de misericórdia que se tornou urgente e imprescindível a todos nós, que é: dar de comer a quem tem fome (Mt 25,35). Diante do homem moderno que pensava que o controlo da natureza era só uma questão de tempo, o caos sanitário que vivemos recentemente transformará para sempre as nossas vidas. A pandemia recordou-nos a nossa identidade genética: somos frágeis e mortais. A pandemia confirmou a nossa identidade social: já não pertencemos à nossa pequena comunidade local, mas somos membros de uma comunidade mundial interligada entre si. A pandemia potenciou até uma renovada identidade eclesial: uma Igreja mais doméstica, mais laical e capaz do digital. A pandemia, mais do que nunca, exige-nos a nossa identidade cristã: não podemos abandonar o nosso próximo1 . Estejamos juntos no combate a esta pandemia e transformemos a sua inevitabilidade numa oportunidade: que cada pessoa seja mais humana e os cristãos mais autênticos. Nenhum de nós, crente ou não crente, pode dormir descansado se sabe que à sua beira existe uma família que passa fome! O alimento é expressão mais básica da nossa cultura humana2 : é comprado pelo trabalho, é preparado para nos dar forças e é consumido na partilha da mesa. A falta de alimento significa quase sempre falta de emprego e as consequências estão à vista de todos. Mais do que nunca, este é um «tempo de misericórdia», como nos recorda a temática anual do Santuário de Fátima. Na única oração que nos ensinou, o Pai-Nosso, Jesus disse-nos para rezar assim: “o pão nosso de cada dia nos dai hoje” (Lc 11,3). Na verdade, trata-se de um “pão nosso” que não é para ser exclusivamente meu ou teu, mas um pão que me é dado por Deus para mim e para ser repartido com o outro3 . Ora, a fome acontece quando este deixa de ser “pão nosso” e passa a ser o “nosso pão”. E nunca nos esqueçamos: o maior poder que a Igreja tem chama-se caridade.

Como sabemos, Francisco (no dia de ontem celebramos os 112 anos do seu nascimento) e Jacinta Marto morreram ainda muito novos, por causa de uma grande pandemia mundial, ficando somente Lúcia, tal como a Senhora de Fátima tinha anunciado na aparição de 13 de junho que hoje evocamos. Recordando as suas palavras, a Senhora disse a Lúcia: «Sim, a Jacinta e o Francisco, levo-os em breve, mas tu, Lúcia, ficas cá mais algum tempo; Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e amar»4 . Ora, vemos aqui mais uma vez a grande atualidade da Mensagem de Fátima, que não é somente uma história do passado que nos comove, mas é uma mensagem que ainda hoje nos desafia5 : Jesus precisa de cada um de nós! Cada um, com a sua história de vida, com as suas qualidades e fragilidades, com os seus projetos e sonhos, é precioso aos olhos de Jesus! O mandamento do amor, o único capaz de salvar a humanidade deste dilúvio que atravessamos depende de cada um de nós porque Deus jamais se esquecerá do Homem (Is 49,15). Aliás, o tema pastoral que o Santuário vive este ano educa-nos para esta relação entre a «graça» de Deus e a «liberdade» da nossa ação: por um lado, a graça de Deus exige-nos uma responsabilidade na nossa liberdade de atuar; por outro lado, esta nossa liberdade é mais rica, mais capaz, com o dom da graça divina6 .

Para terminar, e porque o fado é tão da nossa terra, lembro as palavras que não sei cantar: «a alegria da pobreza / está nesta grande riqueza / de dar e ficar contente». Caros irmãos e irmãs, esta é a nossa maior riqueza: «dar e ficar contente». Este é o segredo do mandamento do amor, o sinal da nossa identidade. Este é o pedido do Senhor Jesus. Esta é a grande sabedoria que aprendemos nesta «escola do amor», que o colo de Nossa Senhora de Fátima tão bem nos ensina!

1 Cfr. Gaudium et Spes, 45.
2 Cfr. BENTO XVI, Caritas in veritate, 27.
3 Cfr. PAPA FRANCISCO, Catequeses sobre o Pai Nosso
4 Memórias da Irmã Lúcia VI, Aparições de 13 de junho, 175.
5 Cfr. ANTÓNIO MARTO, Fátima. Mensagem de misericórdia e de esperança para o mundo, 27.
6 Cfr. Catecismo da Igreja Católica, 1996-2000.
Nuno Nogueira
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