Quem sou eu?

O que em mim se derramou chama-se vida, e eu sou alguém, sou uma pessoa

Sinto uma sensação tão gostosa, um sopro suave, terno, meiguice envolvente e irresistível. Pareço a mim mesmo algo tão pequeno, não insignificante, mas minúsculo e, ao mesmo tempo, grande. Invade-me a sensação de que posso crescer, crescer, mesmo lentamente, e tornar-me um ser considerável em tamanho e porte.

Ah, esse sopro, que não sei de onde vem ou como chega até mim, tão delicado e sensível, magnificente, parece me transformar profundamente ou seria me formar intensamente? Pouco importam as palavras. Importa a força que invade e faz de mim uma existência, alimentada e alimentando-se de um nutriente doce, invisível e saboroso. Sinto-me inundado por uma luz repleta de nuances, enquanto sorvo vorazmente um néctar invisível, bebida vital e sublime. Onde estará o manancial, a fonte que me sustenta? Parece tão próximo e tão distante, generosa simultaneidade.

Foto: Wesley Almeida / cancaonova.com

 

Nesse instante, começo a sentir que me multiplico, sem tensão ou esforço algum. Sou eu em várias outras partes de mim mesmo, como a música sendo composta de notas deleitosas numa harmonia melodiosa e pura. Pouco tempo se passou e sinto-me como um pequeno-imenso quebra-cabeças perfeito, sendo montado lentamente. Como será a figura, a imagem final desse mosaico? Quantas perguntas me invadem, pouco entendo, mas sei que existem milhares de respostas.

Do sopro essencial e único que me envolve, sinto ainda que me falta algo, uma sensação inexprimível, como a de pássaro sem ninho. Ninho? O que será um ninho? Ah, entendi! É um lugar onde se alojam pequenas criaturas como os passarinhos, mas eu não sou um passarinho, tenho certeza; no entanto, sinto que me falta uma espécie de ninho. Vou esperar por essa dádiva, um lugarzinho acolhedor onde eu não precise intuir o que sou ou serei, um lugar onde eu possa repousar em segurança. Ali, eu sinto, serei acalentado e amado. Nesse refúgio afável, ninguém vai me perguntar o que eu sou, por que ou como sou. Posso sentir que ali serei muito amado. Vou esperar por esse abrigo.

Começo, então, a sentir certa mudança. Não sinto mais o fluido cálido do princípio, mas um vazio que me envolve e entorpece. Agora que me sentia prestes a ser aconchegado, a solidão me envolve brutalmente. O frio cresce e sinto dor, sinto abandono. Precisamente no momento em que eu começava a sentir alegria, a ser feliz… sim felicidade, doce abrigo, sonhos de novos dias, a multiplicar-me e tomar feitio. Mas me congelaram. Aquilo que se tornava agradável cor agora é bruma, um matiz cinza triste e arrasador. A luz não gera mais calor e não mais flui em mim o terno e ardente alimento. O que era movimento transformou-se em rigor, o que era brandura tornou-se impiedade . Por quê? É o meu grito. Como resposta escuto somente o eco ressoando nas paredes da dura e imensa geleira que me envolve. O amanhã sonhado e esperado se desfaz entre as nuvens de um gás desconhecido a me envolver em seu abraço gélido e cruel.

Algo em mim, porém, se faz certeza: aquele delicado sopro, aquela beleza do início, a suavidade, a ternura e o carinho, a luz refulgente, é o Amor Absoluto, é Deus, Sopro Divino. O que em mim se derramou se chama vida, e eu sou alguém, sou uma pessoa! Essa é a resposta: sou alguém e existo. Eu existo e há vida em mim!

Qual o meu futuro? Não sei. Meu universo, antes escancarado e ilimitado, agora está fechado. Trancaram-me em lugar seguro, seguro para algo ou alguém, não para mim, a quem foi concedido o dom da liberdade. Privaram-me do direito de ser formado e de tornar-me criatura inteira, um ser em plenitude. Tornaram nulo o meu direito de sorrir, de amar e ser amado; romperam os liames com o mundo que me esperava. Revogaram, em nome da ciência, de um experimento, a oportunidade de ser gente. Hoje, fazem de mim um depósito de componentes de reposição, um estoque de peças sobressalentes.

Afinal, o homem, em seu papel de demiurgo, pouco se importa comigo, um microscópico aglomerado de células denominado embrião. Para a ciência, sou coisa viva e sem vida ao mesmo tempo. Em seu nome, não sou nada, não sou gente. Daqui por diante, vão me fazer um simples espécime, um mero dígito.

– Enfermeira, retire do botijão o número 357Y8, diz o pesquisador apressado.

É… O mundo não precisa mais de um novo Einstein, Platão, Beethoven, Shakespeare, Da Vinci, Ghandi, Agostinho, Tomás de Aquino nem de mim.

É imoral produzir embriões humanos destinados a serem explorados como material biológico disponível (Congregação para a Doutrina da Fé – Instrução “Donum Vitae” 1,5)

 

Fonte: Cancaonova.com