Regras bem definidas conduziam o julgamento de pessoas acusadas de crimes considerados de extrema gravidade. É o caso da mulher apanhada em adultério (Jo 8, 1-11). A cena se abre numa área aberta do templo, a turba se reúne e quer ver sangue, quem sabe a projetar seus próprios traumas ou até culpas escondidas. São autoridades abalizadas a conduzir a pecadora pública e Jesus está presente, após a festa das tendas (Cf. Jo 7, 1-52). É bom saber que o pano de fundo é um outro julgamento em curso, no qual o alvo é o próprio Jesus. Qualquer gesto ou palavra será usado contra ele. Sabemos que algum tempo depois, do alto da cátedra da Cruz, ele mesmo se torna o juiz da história.
Por enquanto, acompanhemos a cena do julgamento da mulher adúltera. Trata-se de assunto ligado à família e alçado às relações sociais e à religião, pois a Escritura contém normas e leis que regulam toda a convivência humana (Cf. Dt 22.22; Dt 31.10; Lv 15.16,19; 18.6, 22,23; Js 8.35). O adultério é considerado crime hediondo e a mulher é a parte mais fustigada em tais situações. Armou-se o tribunal.
As normas eram claras e a mulher fora “apanhada em adultério”. Nem sabemos por onde estaria andando a outra parte envolvida no crime! Juízes são os mestres da lei e outras pessoas revestidas de autoridade. Dá para ver que as provas, ainda que contundentes, foram interesseiramente recolhidas. Chama-se em causa o próprio Moisés, cujo nome remete à lei. Sabemos que muitos acréscimos foram feitos e seu nome era aposto como assinatura a tantas práticas que beiravam o absurdo. Questões de decadência na prática jurídica, espertezas de tantos que, desde aquele tempo, sabem manipular as normas escritas ou orais!
Todos somos apresentados no tribunal aberto em praça pública na história do mundo
Do ponto de vista das práticas correntes, tudo perfeito e preparado para uma provocação àquele que entrava na história sem nela estar envolvido, justamente quem se apresentava como enviado de Deus, para escândalo de muita gente. Cumprir a lei ou saltar uma de suas normas mais claras? O impasse está criado e o tribunal deve decidir depressa! Como resolver a questão? Aqui o protagonismo de Jesus se manifesta, sorrateiramente aos olhos de alguns! Escrever no chão, nem sabemos que frases ou palavras, a única vez em que os evangelhos no-lo apresentam em tal atividade, até porque ele é “a” Palavra feita Carne e não “palavra escrita”. Escreveu sobre a areia e logo tudo foi apagado.
Chega o momento da contraprova! Depressa, cumpra-se a lei, mas “quem entre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”! Sabedoria daquele que é mais sábio do que Salomão! (Cf. Mt 12, 38-42) Um a um, todos se retiram, a começar pelos mais velhos! A sessão do tribunal foi interrompida, sem que o juiz tivesse que bater o martelo! O novo juiz está sozinho, diante da mulher: “Ninguém te condenou? Eu também não te condeno. Podes ir e, de agora em diante, não peques mais!”
Um salto no tempo! Todos nós, muito ou pouco, somos apresentados diante do tribunal aberto em praça pública na história do mundo. Faz-se necessário, por honestidade de princípio, que saibamos ser pecadores da lista que quisermos fazer dos pecados de todas as gerações. “Eu sou o primeiro pecador” é a confissão honesta de cada pessoa em tempo de Quaresma. É a declaração do Apóstolo: “É digna de fé e de ser acolhida por todos esta palavra: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro. Mas alcancei misericórdia, para que em mim, o primeiro dos pecadores, Jesus Cristo mostrasse toda a sua paciência, fazendo de mim um exemplo para todos os que crerão nele, em vista da vida eterna” (1 Tm 1, 15-16).
No tribunal, calem-se todas as vozes acusatórias e resplandeça o silêncio dos olhares agora transfigurados em misericórdia! Esta é a grande virada do jogo da vida. Ninguém se arvore em presunção de inocência, todos tenham coragem de bater no peito e se reconheçam pecadores, frágeis, mas… amados! Este é o segredo! Ao pecador chegue o olhar daquele cujos dedos só escrevem pecados na areia, mas gravam na rocha de seu amor infinito a gratuidade do perdão e da acolhida benevolente.
É preciso apresentar a lista das misérias para serem queimadas no tribunal da misericórdia
Venham para a praça da vida todas as pessoas machucadas pela sua própria história, ou tantas outras acusadas de crimes de toda espécie para chegar até os pecadilhos escondidos! Comecem o exame de consciência olhando para a luz de Deus e não apenas para o espelho, pois este pode estar turvo de complexos e traumas acumulados com o tempo. Tragam todos a lista de suas misérias, deixando que sejam queimadas na fornalha do amor misericordioso, no júbilo do Ano Santo.
Só existe uma condição indispensável, a sinceridade e a honestidade diante de Deus. Abatam-se as barreiras da vaidade, da dissimulação e do orgulho. Desmontem-se todas as pretensões de inocência ou as muitas justificativas dos erros cometidos, pois é o tempo da verdade que liberta (Cf. Jo 8, 32).
Este é o caminho da reconciliação com Deus e a Igreja. Existe uma oferta de amor, disponível para todos. É Sacramento da Penitência. Alguns gostam de chamá-lo Tribunal da Penitência, mas a sentença é sempre o perdão. Estão abertas suas portas em nossas igrejas! Para testemunhar seu valor, em dias recentes foi estampada mais uma vez a imagem do Papa Francisco diante de um confessor na Basílica de São Pedro. O sucessor de Pedro, que repetidas vezes se declara pecador e carente da misericórdia de Deus, como todos nós, puxou a fila dos penitentes, certamente acompanhado de uma multidão interminável que, aqui e em outras paragens, começa a sair dos intrincados novelos do pecado para abrir-se à graça, ouvindo com alegria: “Eu também não te condeno. Podes ir e, de agora em diante, não peques mais” (Jo 8, 11).
Dom Alberto Taveira
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