Caríssimos irmãos, a dupla entrega, da Mãe ao discípulo e do discípulo à sua Mãe, é parte relevante do “testamento” de Jesus, ao partir deste mundo visível, para ainda mais o preencher com a sua humanidade crucificada e ressuscitada. Irrecusável, pois, esta dupla entrega. Pelo momento definitivo em que foi feita, quando cada palavra de Jesus lhe resumiu a vida, a graça e o dom.
Se estamos aqui reunidos, provindos dos quatro cantos da terra e de todos os rincões de Portugal, é porque, antes de mais e por parte de Maria, a entrega foi inteiramente correspondida. Nos trinta e poucos anos da vida terrena de Jesus, Maria foi alargando espiritualmente a maternidade aos discípulos do seu Filho. Com eles se manteve depois da ressurreição, até ao Pentecostes que os enviou a todos os povos, para ainda a estes se alargar também.
Quando o Evangelho chegou ao que é hoje a nossa terra portuguesa, o envolvimento maternal de Maria, foi somando referências, que dela passaram para as nossas etapas coletivas, como que as garantindo muito mais. Se era sobretudo a sua “maternidade expectante” (18 de dezembro) quando estávamos para nascer como povo, foi a “assunção” (15 de agosto) quando crescemos e a “imaculada conceição” (8 de dezembro) quando nos restaurámos. Revemo-nos hoje, com a Mensagem de Fátima, no Imaculado Conceição de Maria. E aqui estamos no seu lugar de excelência, agradecendo com Maria os muitos dons que nos obteve do Céu, como Mãe e Padroeira: «O meu espírito alegra-se em Deus meu Salvador!»
Não pretendi nesta breve alusão demorar-vos com nada de secundário. Nem esqueço que, em muitas nações, o legado maternal de Maria tem outras referências, próprias e marcantes também. Mas, estando nós em tempo de grandes indefinições culturais, lembro tão-somente que Portugal nunca se entendeu sem Santa Maria, cuja “terra” é. E adianto ainda que só por grande distração ou preconceito não se notará o que aqui sucede há um século quase, neste chão bendito da Cova da Iria.
Sendo as famílias e o catolicismo realidades fundantes do que somos hoje, ainda que sejamos diversos, hão de ser tidos em conta por organizações posteriores, como o Estado ou as instâncias internacionais, quando legislam ou administram o que a todos respeita. As entidades políticas servem o bem comum, que é o bem de todos segundo as legítimas escolhas de cada um. Porque solidariedade sem subsidiariedade, não o é de facto. É neste ponto que culto, cultura e sociedade se devem harmonizar, mesmo e sobretudo em sociedades plurais e democráticas, como quer ser a nossa.
Gerações somamos de peregrinação, em tempos de guerra e em tempos de paz, em horas de dor e ainda de esperança, por si, pelos seus e por muitos outros. Porque em tantos lugares continua a vida, pessoal ou pública, como sempre acontece. Buscam-se soluções, tomam-se medidas, de acerto variável… Mas, aqui em Fátima, antes, durante e depois disso e muito mais, cumpre-se o legado do Senhor na Cruz: temos uma mãe, pulsa um coração. Uma mãe que, sendo de Jesus, o é de nós todos. Um coração em que cabem e se sublimam os de todas as mães. Será esse talvez o maior “segredo” de Fátima. E assim mesmo atrai, assim mesmo perdura.
– Mas, se a Mãe de Jesus cumpre assim totalmente o que lhe incumbiu, de ser também nossa, como cumprimos nós a parte correspondente de sermos seus filhos e a guardarmos connosco e nas nossas vidas?
Na verdade, é sobretudo com Ela que a maternidade ocupa na Igreja o seu lugar devido e completo. Sem Maria não houve Cristo no mundo e sem Maria não há Igreja de cristãos. O carisma mariano antecede e excede o petrino, porque antes de sermos ministério somos mistério – e precisamente um mistério de amor, que nisso mesmo encontra a expressão mais intensa.
Maternidade que tem no feminino a concretização específica, mas se alarga a Deus e à Igreja toda, como sentimento geral e necessário. Aliás, nem captaríamos algo de Deus, realidade absoluta, sem o feminino, em que também Se exprime, como lembra o Catecismo, quando ensina: «Deus não é, de modo algum, à imagem do homem. Não é homem nem mulher. […] Mas as “perfeições” do homem e da mulher refletem qualquer coisa da infinita perfeição de Deus: as de uma mãe e as dum pai e esposo» (Catecismo da Igreja Católica, 370).
Como quando Deus a si mesmo refere superlativamente o amor materno, para acalentar o seu povo (cf. Is 50, 15); ou quando o próprio Jesus queria guardar “maternalmente” os habitantes de Jerusalém, como a galinha aos pintainhos (cf. Lc 13, 34); ou quando Paulo diz de si próprio aos tessalonicenses, resumindo a alma do apostolado em geral: «Quando nos poderíamos impor como apóstolos de Cristo, fomos, antes, afetuosos no meio de vós, como uma mãe que acalenta os seus filhos quando os alimenta» (1 Ts 2, 7).
– Quantas consequências espirituais e práticas devemos tirar daqui! Atendamos ao Papa Francisco, quando escreve assim: «Ao pé da cruz, na hora suprema da nova criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a ela, porque não quer que caminhemos sem uma mãe […]. Não é do agrado do Senhor que falte à Igreja o seu ícone feminino. Ela, que o gerou com tanta fé, também acompanha “o resto da sua descendência, isto é, os observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus” (Ap 12, 17)» (Evangelii Gaudium, 285).
O ícone da adesão a Cristo como em Maria aconteceu, de sentimento profundo, decisão forte e prática consequente. E com Maria há de acontecer em nós – e por nós no mundo, o nosso mundo agora. Misericórdia, Igreja e Maria são expressões maternas do amor envolvente, em torno de Cristo e do seu Coração: ao Sagrado Coração de Jesus pelo Imaculado Coração de Maria, assim resumiremos a devoção cristã – e a própria mensagem de Fátima.
Neste lugar bendito, como nas nossas comunidades e famílias, a devoção mariana não distrai do mesmo Cristo, que afinal a autoriza. Mas tem de lhe obedecer estritamente: “Eis aí a tua mãe!” é uma indicação precisa, como Ele a dá ao discípulo, que nos representa a todos. A exegese, a teologia, o magistério e a vida do Povo de Deus ajudar-nos-ão a dar-lhe o valor devido, mas nunca dispensável.
E são os próprios Papas a insistirem neste “lugar” materno e mariano, como imprescindível para nos concentrarmos em Deus, como se revelou em Cristo. São João Paulo II, devoto e peregrino deste Santuário, nunca esqueceu no seu preenchido magistério o lugar e o papel de Maria na vida de Cristo e dos discípulos. Na esteira de grandes autores do ocidente e oriente cristãos e em grande correspondência à piedade mariana do Povo de Deus, sublinhou, com o Concílio, o lugar da Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja (cf. Lumen Gentium, cap. VIII). Deixou-nos, quase como testamento espiritual, a carta apostólica Rosarium Virginis Mariae, que nos fará muito bem reler e retomar, para cumprirmos a nossa parte da herança de Jesus, no que a Maria se refere.
Aí lemos frases como esta: «Recitar o Rosário nada mais é senão contemplar com Maria o rosto de Cristo» (RVM, 3). Rosto de Cristo que nos indica tudo o que havemos de fazer no mundo, como Ela exemplarmente o cumpriu. E o Papa Wojtyla já nos indicava como urgências para a recitação do Rosário as duas causas maiores da atualidade eclesial e social: a paz e a família.
Porque, escrevia ele, «descobrir novamente o Rosário significa mergulhar na contemplação do mistério daquele que é a nossa paz» e «não se pode recitar o Rosário sem sentir-se chamado a um preciso compromisso de serviço à paz». Semelhantemente, «análoga urgência de empenho e de oração surge de outra realidade crítica da nossa época, a da família, célula da sociedade, cada vez mais ameaçada por forças desagregadoras a nível ideológico e prático, que fazem temer pelo futuro desta instituição fundamental e imprescindível e, consequentemente, pela sorte da sociedade inteira». E, juntando oração mariana e prática eclesial, prossegue: «O relançamento do Rosário nas famílias cristãs, no âmbito de uma pastoral mais ampla da família, propõe-se como ajuda eficaz para conter os efeitos devastadores desta crise da nossa época» (RVM, 6).
Mais uma vez, “para grandes males, grandes remédios”: asseguremos a família no próprio núcleo em que esta divinamente se revela, na Sagrada Família, da Anunciação à Páscoa. Com Jesus por Maria, em oração e prática.
O Papa Francisco abriu-nos na exortação apostólica Evangelii Gaudium (24 de novembro de 2013) o percurso eclesial que agora percorremos (cf. EG, 1). E é ele mesmo a dizer-nos que não o faremos sozinhos, mas precisamente envoltos pela maternidade de Maria, como o próprio Jesus o quis e dispôs. Com palavras luminosas faz-nos seguir o percurso de Cristo em comunhão com a sua Mãe: «Maria é aquela que sabe transformar um estábulo de animais na casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. […] É a amiga sempre solícita para que não falte o “vinho” na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela espada, que compreende todas as penas. […] Como uma verdadeira mãe, caminha connosco, luta connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus. Através dos diferentes títulos marianos, geralmente ligados aos santuários, partilha as vicissitudes de cada povo que recebeu o Evangelho e entra a formar parte da sua identidade histórica» (EG, 286).
Mistérios de Cristo, que Maria ensina, a favor de todos e das variadas situações da vida e dos povos – como aqui rezamos por sãos e enfermos, sós ou sem trabalho, vítimas e refugiados, neste Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima! Vai para um século, era apenas Ela, a ensinar três crianças a rezar assim. Hoje somos tantos e a aprender também. Mas é como crianças que entraremos num Reino que vai da terra ao céu. Com os Pastorinhos, comecemos já, prossigamos sempre.
+Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa
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