Homilia na Missa do Dia de Natal

E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós

O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós… Assim acabamos de ouvir e por isso aqui estamos com Ele, porque Ele está connosco. Reconheçamo-lo mais, para o anunciarmos melhor. Como indica a nossa Constituição Sinodal de Lisboa, numa das suas opções programáticas: «Centrar o conteúdo da evangelização no querigma, fazendo ressoar em todas as partes o primeiro anúncio da fé».
Na verdade, existimos como Igreja no mundo para testemunhar o que recebemos e sabemos: Em Jesus, seu Verbo incarnado, Deus comunica-se inteiramente, para que nasçamos com Ele, com Ele vivamos e morramos e em tudo isto ressuscitemos já e renasçamos todos. É um todo, para uma vida total. Pois as tábuas do presépio anunciam as da cruz e o grande brilho daquela noite em Belém fulgurará para sempre na madrugada pascal.
O Cristianismo, se assim chamarmos à religião que professamos, é a relação que mantemos com Deus “por Cristo, com Cristo e em Cristo”. Creio ser oportuno lembrar que não é propriamente uma “religião do livro”, ainda que guarde nos Evangelhos o essencial do que aconteceu com Jesus. São textos de referência obrigatória, porque as primeiras comunidades reconheceram neles a transcrição do que já viviam. É por isso que o lugar legítimo de leitura e compreensão das Escrituras é sempre a comunidade em que nasceram e as autenticou a elas, não o contrário.
Aliás, como nos lembra um passo do quarto Evangelho, «muitos outros sinais miraculosos realizou ainda Jesus, na presença dos seus discípulos, que não estão escritos neste livro» (Jo 20, 30). Isto quanto à quantidade da incarnação do Verbo. Mas também, quanto à quantidade da compreensão do que disse, só progressivamente distendida na vida da Igreja e por iluminação do Espírito: «Fui-vos revelando estas coisas enquanto tenho permanecido convosco; mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, esse é que vos ensinará tudo, e há de recordar-vos tudo o que Eu vos disse» (Jo 14, 25-26).
Assim é bom lembrar, caríssimos irmãos, que somos a religião do Verbo incarnado, não simplesmente os leitores de textos originais ou traduzidos. Temo-los, é certo, lemo-los e veneramo-los, mas não são o principal. O principal é a “carne “ do Verbo, que continua no corpo da Igreja. Igreja que reconhece nas Escrituras o essencial do que Jesus disse e fez e, por ação do Espírito, o vai compreendendo e aplicando.
Também para isso contamos com o ministério apostólico, que nos conserva na tradição autêntica. Mesmo São Paulo, a quem não faltava experiência pessoal de Cristo vivo, procurou a confirmação apostólica, como escreve aos Gálatas, e fê-lo divinamente inspirado: «Subi outra vez a Jerusalém […]. E pus à apreciação deles – e, em privado, à dos mais considerados – o Evangelho que prego entre os gentios, não esteja eu a correr ou tenha corrido em vão» (Gl 2, 1-2).
Assim o Verbo incarnado vai ressoando entre nós e por nós no mundo. Guardamo-lo em Igreja para que Ele nos guarde em missão. Ele só e não outra voz qualquer. Século após seculo, continente a continente, cultura a cultura, o núcleo essencial vai revelando a infinda sugestão que contém, em mútua fecundidade com o próprio desenvolvimento da humanidade a que se dirige.

– Que importante é continuarmos o Natal do Verbo incarnado, com a sua assimilação pessoal e comunitária! Oiçamos atentamente a Escritura que O transcreve. Assimilemo-Lo na meditação pessoal e comunitária, como a Constituição Sinodal de Lisboa igualmente indica noutra opção programática: «Incrementar a lectio divina (leitura orante da Palavra) como prática habitual nas comunidades cristãs».
Com tudo isto e o mais, celebremos o Natal deste “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2016”. Como poderíamos até dizer prosaicamente que “é tão simples, basta lembrar…”
Por “carne” o texto bíblico refere certamente a humanidade que somos e em que Deus se quis dizer, do Natal à Páscoa do seu Verbo. Mas não abstrata, antes no concreto de quem sente e sofre, de quem deseja e espera. Isto mesmo que realmente somos, nós e os outros.
Foi assim que Deus se disse, nascendo onde (não) lhe arranjaram lugar. Que teve de ser levado para longe da sanha de Herodes; que viveu depois em Nazaré da Galileia, nas vicissitudes duma povoação como tantas; que inaugurou um Reino tão diferente dos outros que os desafiou a todos, como desafia sempre, como desafia agora, para que os últimos se tornem realmente em primeiros; que proclamou felicidades (bem-aventuranças) que radicalmente contrastam com aquelas em que nos deseducamos… E tudo isto na “carne”, isto é, na vida como ela é, ou ainda não é o que deve ser.
Assim mesmo celebramos este Natal, aqui na sé de Lisboa. Mas assim mesmo nos lembramos doutros rostos que este Natal contém, para neles igualmente incarnar. Os de quem está só e espera a nossa visita, de quem está perto e não reparamos, de quem nos irrompe do ecrã mediático, a partir de tantas tragédias do mundo… Aí também o Verbo incarna, aí também nos espera. Qualquer oração mais intensa, qualquer gesto mais efetivo nos aproximarão d’Ele como aos pastores do presépio. O Verbo ressoa e o seu eco seremos nós.
Sim, «o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós». Sobretudo em três “lugares” onde nos falou e fala, interpela e ressoa, como podemos recapitular:
Na comunidade crente, pois nos garante: «Quem vos ouve é a Mim que ouve», como disse aos setenta e dois discípulos (cf. Lc 10, 16), que éramos já nós todos.
Na tradição apostólica, como o Ressuscitado a consignou aos Onze: «Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos» (Mt 28, 18-20).
Na voz de quem pede, mesmo sem falar, pão, agasalho e companhia, assim indicando o juízo definitivo: «Vinde, benditos de meu Pai! […] Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e visitastes-me, estava na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25, 34-36).
Assim ressoa o Verbo, porque assim mesmo incarnou e incarnado nos acompanha e aguarda. É este o Natal celebrado e este há de ser o Natal cumprido. Assim começou em Maria, lugar por excelência da Incarnação e da Igreja, quando respondeu duma vez por todas, duma vez por nós todos: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38).

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2016

+ Manuel, Cardeal-Patriarca