HOMILIA 13 SETEMBRO | “A vocação do ser humano não é a perdição, mas a salvação e Maria é a Mensageira dessa alegria e salvação do mundo”

Peregrinação internacional aniversária setembro
D. Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e de Segurança

“Deus está contente com os vossos sacrifícios…” comunicava Nossa Senhora aos Pastorinhos a 13 de setembro de 1917, num momento em que o mundo mergulhava na dramática angústia da guerra e a humanidade tinha a tristeza estampada no rosto. Mas eis que do Céu uma voz desce e vem-nos falar da alegria de Deus, – “Deus está contente”. Sim, Ele nunca desiste de nós, nem deixa de rasgar os horizontes da humanidade com a luz da esperança. Jamais Ele permite que o mal comande os desígnios da história. É um Deus vivo que conhece e experimenta o doce sabor da alegria. Da alegria que irrompe sempre que o ser humano se deixa resgatar e é salvo. Foi essa a alegria do Pai Misericordioso quando viu regressar a casa o seu filho “que estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.” (cf Lc 15, 24); foi também a que assomou no coração do Bom Pastor quando encontrou a ovelha perdida. E é o regozijo do banquete nupcial que esplende na comunhão dos santos junto do Pai.

Por isso, se está estabelecida uma aliança entre a alegria de Deus e salvação da humanidade, então a Boa Nova que Nossa Senhora trouxe e que proclamou precisamente neste lugar é que o mundo não está perdido. A vocação do ser humano não é a perdição, mas a salvação. E Maria Santíssima é a Mensageira dessa alegria e da salvação do mundo. Foi-o aqui em Fátima, como o tinha sido quando visitou a sua prima Isabel para lhe comunicar a boa nova da iminente vinda do Redentor e também quando “exultou de alegria no Senhor, seu Salvador, que encheu de bens os famintos e aos ricos despediu de mãos vazias”. (cf Lc 1, 53).

Também nas Bodas de Canaã, Nossa Senhora surge como Mãe da alegria. Como ouvimos no evangelho de hoje, aconteceu que faltou o vinho naquele casamento e Maria, Mãe de Jesus, fê-lo presente ao seu Filho. Ele respondeu-lhe que ainda não tinha chegado a sua hora; mas depois ouviu a solicitação de Maria e, tendo mandado encher de água seis ânforas grandes, transformou a água em vinho, num vinho excelente, de qualidade superior ao que havia sido servido até então.

Este vinho de excelente qualidade é A «alegria do amor». A sua escassez esvaziava de sentido aquele matrimónio que ficava reduzido a mera encenação. As talhas de pedra vazias tornam-se, assim, uma dramática representação daquelas bodas, onde falta algo de essencial, mas são igualmente como que a gramática do que, muitas vezes, sucede ao coração e à vida das pessoas quando privadas de sentido e de razões de viver. O “vazio” indica a tristeza e nada esvazia tanto o coração humano como a escassez do amor. Nada, como a sua ausência, torna o coração mais árido e a vida mais insípida. E era precisamente do que carecia o culto judaico, perdido como estava na cega observação da letra da lei. O próprio mundo conhece momentos de aridez e de secura; de secura interior, humana, espiritual…

Por outro lado, também é verdade que o ser humano tem pavor aos vazios e por isso tenta colmatá-los com a embriaguez do consumo que hoje inclui não só bens materiais, como também bens imateriais. Somos devorados por um consumismo afetivo e até mesmo espiritual numa busca desenfreada de experiências cada vez mais inovadoras e radicais. Mas a pessoa não se salva por intermédio das coisas efémeras que possui ou experimenta e, por isso mesmo, hoje, a situação de muitas irmãs e irmãos continua retratada na imagem das talhas vazias que esta página do evangelho nos apresenta. Só o amor nos salva e nos preenche, construindo e reconstruindo a vida redimida a partir das ruínas em que tantas vezes nos encontramos. A salvação reside no facto, ao mesmo tempo simples e complexo, de ser amado e de amar. E só Cristo, nosso Redentor, pode realizar essa obra de salvação. Uma vez mais nos vem dirigida aquela sagrada palavra de Nossa Senhora: «Fazei o que Ele vos disser».

Ao ter iniciado o seu ministério público nas bodas de Caná, Jesus manifesta-se como o esposo do povo de Deus, anunciado pelos profetas, e revela-nos a profundidade da relação que nos une a Ele numa nova Aliança fundada no amor. Com este «sinal», em Caná da Galileia, Jesus revela-se o Esposo, que veio estabelecer com o seu povo a nova e eterna Aliança, segundo as palavras dos profetas: «Assim como a esposa faz a felicidade do seu marido, tu serás a alegria do teu Deus» (Is. 62, 5).

Somos discípulos e, por isso, membros da Esposa do Senhor. Ele chamou-nos para o seguir e uniu-nos a si. O amor foi derramado pelo Espírito nos nossos corações e é a nossa união com o Senhor que restabelece a única relação possível com Deus: já não sob a obrigatoriedade da lei, mas sob o poder do amor. Esta é relação da nova aliança. A alegria do amor constrói e realiza o nosso chamamento à santidade porque só na mais profunda união com o Senhor se realiza o desígnio eterno do Pai para cada um de nós (cf. Ef 1, 4).

Recordemos o que Nossa Senhora referiu a respeito do motivo da alegria no Céu, o testemunho do incondicional amor dos Pastorinhos: “Deus está contente com os vossos sacrifícios…” Os sacrifícios dos pastorinhos têm valor salvífico porque, ao contrário do que tantas vezes é referido pelos Profetas — «não quero sacrifícios, mas misericórdia» —, referindo-se a práticas exteriores, os sacrifícios nos pastorinhos resultavam de um excesso de amor, de uma abundância. São sacrifícios com a medida do amor: repletos de Deus, nenhuma exigência lhes parecia demais para fazer vingar em tudo a causa de Deus. Era, pois, a vida em Deus que os preenchia. E essa plenitude redundava em alegria transbordante.

Só Cristo pode salvar a humanidade e o mundo da tragédia da escassez de amor. Só Ele pode colmatar as crateras da tristeza que se abrem nas paisagens da alma. O evangelho aponta um caminho, um itinerário para a salvação.

Primeiro, acolher Maria na nossa vida, como foi acolhida na casa do discípulo amado. De facto, sob a cruz, o discípulo recebeu o convite do Redentor Crucificado “«Eis a tua mãe!» E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a com sua.” (Jo 19, 26)

Como nos informava a primeira leitura sobre a Igreja das origens: «Todos perseveravam em oração, em companhia de algumas mulheres, entre as quais Maria, Mãe de Jesus” (At. 1,14).

Também nós somos chamados a acolhê-la no nosso coração. Desde os acontecimentos do Calvário que, além de sermos templos do Espírito Santo, também somos morada de Nossa Senhora. Ela revigora-nos em ordem a uma perpétua união com Cristo. As palavras que Maria dirige aos servos: «Fazei o que ele vos disser» são as suas últimas palavras narradas pelos evangelhos, são a herança que entregou a todos nós e que repete hoje uma vez mais. Mas nós só escutaremos a sua voz se Ela estiver presente na nossa vida. Abramos-lhe o coração!

Segundo, somos interpelados a escutar a Palavra do Senhor e a pô-la em prática, como fizeram os serventes do evangelho. Recordava a segunda leitura que Jesus “é a pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus… e quem nela puser a sua confiança não será confundido” (1Pe 2, 4.6). Mas quem não acreditar nela vai tropeçar. Para que Cristo seja a pedra sobre a qual construímos a vida é, pois, necessário que a sua Palavra seja escutada e posta em prática. Aliás é essa a mensagem da parábola da casa construída sobre a rocha: «Todo aquele que escuta estas minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha» (Mt 7, 24).

Terceiro lugar, somos chamados a ir levar o vinho da alegria. A nossa comunhão com Cristo, a nossa vocação para sermos um com Ele como Ele é um com o Pai gera e sustenta a comunhão com os irmãos. Torna-nos sacramento ou sinal da missão evangélica, como o foi a transformação da água em vinho. Por isso, a palavra final do evangelho, quando refere que este havia sido o primeiro sinal de Jesus, revela a missão que somos chamados a realizar: ser sinal, ou melhor: um verdadeiro sacramento do encontro com Deus.

Será na nossa vida de comunhão com Cristo que muitos dos nossos irmãos e irmãs encontrarão alento e estímulo para eles próprios viverem aquela experiência de união com o Senhor. Seja esta a nossa proposta para o mundo: mostrar a nossa experiência de vida com Cristo, testemunhá-la na vida quotidiana para que todos os que observarem a forma como vivemos se interroguem acerca do seu significado mais profundo e se sintam atraídos e fascinados com a vida cristã que na Igreja transparece. Suscitaremos, assim, na mente e no coração dos outros sede e fome de Deus. Na verdade, o líquido contido nas talhas só revelou ser vinho de altíssima qualidade quando foi levado e exposto ao paladar dos convivas. Assim também toda a riqueza que possuímos no coração e na vida se revelará preciosa se não ficar escondida dentro das paredes das nossas igrejas, ou nos espaços das nossas paróquias, ou nos silêncios da nossa timidez, mas quando se tornar dom para outros. Senhora do Rosário de Fátima, rogai por nós. Ámen