HOMILIA 13 MAIO | Fátima uma alavanca da nossa humanidade e um laboratório sem portas nem muros, sempre aberto para a esperança

Neste 13 de maio de 2021, na homilia da missa evocativa da primeira aparição de Nossa Senhora aos Pastorinhos de Fátima, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça prosseguiu a sua reflexão sobre “a tempestade que desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade”. E assim, a experiência de ser peregrino de Fátima é ser iluminado. “Seja o pequeno mundo do nosso coração, seja o coração do vasto mundo” em que Nossa Senhora fez “deste lugar uma alavanca da nossa humanidade. Um laboratório sem portas nem muros, sempre aberto para a esperança!” e, juntamente com o seu filho Jesus nos reergue de todas as fraquezas.

.: texto da homilia na íntegra

 

foto | Santuário de Fátima

Queridos irmãos e irmãs

O Evangelho de hoje é, como ouvimos, muito breve: três versículos apenas. Três versículos que nos são narrados com uma visualidade intensa, quase cinematográfica. Começa com um plano de conjunto, apresentando-nos as personagens que estão junto à cruz. Continua com um plano médio, isto é mais focado, mostrando-nos o olhar de Jesus que identifica entre essas personagens a Sua Mãe e o discípulo amado. E passa para um plano mais focalizado ainda, o chamado grande plano ou plano de proximidade, onde Jesus diz à Mãe, «Mulher, eis aí o teu filho», e ao discípulo, «Eis aí a tua Mãe». No fundo, o que o evangelista propõe é que passemos do geral para o particular, que nos foquemos em Jesus, que nos aproximemos tanto da cruz que possamos escutar o que está a ser dito pelo crucificado.

E o que é que está a ser dito pelo crucificado? Por Jesus, naquele momento, está a ser instituída uma aliança indestrutível de amor: aquela que passará a ligar filialmente aquele discípulo (e nele, todos os outros discípulos; e os discípulos de todos os tempos) à pessoa de Maria. Jesus transforma, assim, a experiência da crise mais extrema numa ocasião para relançar a vida, para restaurar a sua frágil arquitetura, para propor um novo começo. Jesus não se conforma ao fatalismo. Pelo contrário, na hora suprema da crise, Ele continua a empurrar a história para a frente, continua a ativar futuros, a inscrever o futuro de Deus no atribulado presente histórico dos homens, a devolver esperança a quantos se sentem cansados e oprimidos, a tomar sobre Si – com que compaixão! – todas as feridas, a buscar e reintegrar o que estava declarado como perdido. Olhando para a cruz poderíamos pensar que Jesus estava brutalmente confinado. E estava. Mas o verdadeiro desconfinamento é aquele que o amor opera em nós. O amor é o mais verdadeiro, o mais profético, o mais necessário desconfinamento. Por isso, despojado de tudo Jesus não cessa de nos enriquecer com o dom de Si mesmo. Com os braços amarrados às traves da cruz, Ele não deixa de se tornar próximo e de nos abraçar. Emudecido pelo sofrimento, Ele continua, porém, a relançar a vida. Jesus transforma – e ensina a transformar – as crises em laboratórios de esperança. Com razão, somos chamados a louvar o Senhor que levanta os fracos!

Numa hora de encruzilhada da história como esta que vivemos não podemos fazer coincidir o relançamento da esperança unicamente com o cuidado pela expressão material da vida. Sem dúvida que é urgente garantir o pão e esse trabalho exigente – fundamentalmente de reconstrução económica – deve unir e mobilizar as nossas sociedades. Mas as nossas sociedades precisam também de um relançamento espiritual. Sem o pão não vivemos, mas não vivemos só de pão. Os maiores momentos de crise foram superados infundindo uma alma nova, propondo caminhos de transformação interior e de reconstrução espiritual da nossa vida comum. É essa a mensagem de Fátima, naquele longínquo 1917, com o mundo mergulhado na primeira guerra química da história e uma das que maior mortandade infligiu. O que é que a Virgem pediu à humanidade, através dos pastorinhos? Oração, penitência e conversão, isto é, meios concretos de reconstrução interior. É curioso que no mesmo ano das aparições, um grande filósofo europeu, Max Scheller, pensava na necessidade de reconstrução civilizacional da europa e propunha ferramentas muito semelhantes àquelas de Fátima. Dizia ele que a reconstrução da europa só seria possível se as diversas nações assumissem face à tragédia da guerra comum a necessidade de «uma penitência comum, um arrependimento comum, um sacrifício comum» que favorecesse depois uma renovada capacidade de interajuda solidária e recíproca.

Em 1943, perspetivando a necessidade de um projeto espiritual que permitisse à europa renascer da devastação da Segunda Guerra mundial, a filósofa Simone Weil redige o «Prelúdio para uma Declaração dos Deveres para com o Ser Humano», insistindo em que as necessidades humanas são físicas (necessidade de pão, de proteção social, de habitação, de cuidados de saúde…), mas são também morais e espirituais. E escreve Simone Weil que constitui um atropelo à vida humana privá-la desse «alimento necessário à vida da alma».

Há trinta e nove anos atrás, o Papa São João Paulo II presidia a esta eucaristia «para agradecer à Divina Providência, neste lugar, que a Mãe de Deus parece ter escolhido de modo tão particular», ter sido poupada a sua vida ao atentado na Praça de São Pedro em Roma. E o apelo de João Paulo II é que se reconhecesse em Fátima a preparação de um tempo espiritual novo. E dizia: «a mensagem de Nossa Senhora de Fátima, tão maternal, se apresenta ao mesmo tempo tão forte e decidida. […] É como se falasse João Baptista nas margens do rio Jordão. […] Esta mensagem é dirigida a todos os homens. […] E objeto do seu desvelo são todos os homens da nossa época e, ao mesmo tempo, as sociedades, as nações e os povos».Por sua vez, a experiência da pandemia e a crise poliédrica e global que ela instaurou representam igualmente para a nossa contemporaneidade um imenso desafio a renascer. A consciência das cinzas deve responsabilizar-nos ainda mais na procura do fogo. Pois não basta voltarmos exatamente ao que éramos antes: é preciso que nos tornemos melhores. É preciso um suplemento de alma. É preciso que desconfinemos o nosso coração.

As perguntas que hoje escutamos na leitura do Livro do Génesis reverberam cheias de acuidade no presente: «Onde estás?» e «Que fizeste?». Este é chamado a ser também um momento de revisão crítica do caminho que realizámos até aqui, de fazer uma espécie de balanço interior que avalie os nossos estilos de vida, os modelos de desenvolvimento e a natureza das opções que nos têm conduzido. Como referiu o Papa Francisco, no inesquecível momento extraordinário de oração na Praça de São Pedro vazia, «a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à vida da nossa comunidade». Mas estamos a tempo de transformar a crise em oportunidade e a calamidade em esperança. Na verdade, a experiência da pandemia não nos deu apenas uma consciência mais lúcida das nossas fraquezas. Ela tem deixado a claro aquelas que são as nossas maiores forças. Entre elas, e cito de novo o Papa Francisco, «aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença uns aos outros como irmãos»

«Eis aí»: «Eis aí o teu filho», «Eis aí a tua Mãe». O mandato de Jesus resitua-nos, redefine o nosso papel e o nosso lugar no mundo, abre-nos para horizontes imprevistos. A Mãe de Jesus sabe-o bem, pois Jesus faz da crise mais avassaladora que é a cruz não uma ocasião para o fechamento, mas para a abertura. Não uma estação para nos concentramos no que perdemos, mas para olharmos com olhos novos os que estão ao nosso lado, o que está mais próximo de nós. «Eis aí», «Eis aí». O mandato de Jesus é para que nos tornemos capazes de uma verdadeira e criativa hospitalidade da vida. Jesus fala de mãe e de filho para apontar relações que tocam os alicerces da vida, que se situam a um nível humano de profundidade e de verdade que é o oposto das relações pontuais, puramente epidérmicas, das relações de indiferença, de consumo ou de descarte. Jesus fala de mãe e de filho para assim concretizar a fraternidade, já que não se trata de substituir Jesus no coração de Maria dando-lhe outro filho. Não se trata de substituir, mas de alargar e incluir, de inscrever fraternalmente a nossa humanidade dentro do coração maternal de Maria. A aliança expressa no «Eis aí o teu filho», «Eis aí a tua Mãe» é certamente uma aliança de filiação, mas também é um selo de fraternidade. Não tenhamos dúvidas: a reconstrução pós-pandemia depende do modo como encararmos a fraternidade. É isso que afirma o Papa Francisco na Encíclica «Fratelli Tutti» que se propõe como bússola à Igreja e ao mundo para relançarmos a nossa viagem comum. E exorta o Santo Padre: «Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos».

Provavelmente, ouvindo a página do Livro do Apocalipse que foi proclamada, dissemos para nós próprios: «isto é um sonho». «Um novo céu e uma nova terra», Deus que habita no meio de nós e enxuga «todas as lágrimas», não existir «mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor». Só pode ser um sonho. Mas não tenhamos medo de ter sonhos, e sonhos grandes, porque como recorda o autor do Apocalipse, Deus potencia e confirma os nossos sonhos. «O que estava sentado no trono disse: “Eu renovo todas as coisas”». O mundo fatigado por esta travessia pandémica que ainda dura, e que pede a cada um de nós vigilância e responsabilidade, não tem apenas fome e sede de normalidade: precisa de novas visões, de outras gramáticas, precisa que arrisquemos ter sonhos. Em especial aos jovens, e aos jovens portugueses que se preparam para acolher em 2023 as Jornadas Mundiais da Juventude, eu quero dizer a partir de Fátima: em vez de ter medo, tenham sonhos. Descubram que Deus é aliado dos vossos sonhos mais belos. Ousem sonhar um mundo melhor. Sintam que o futuro depende da qualidade e da consistência dos vossos sonhos.

E, por fim, dirijo-me a vós, amados peregrinos. E quero dizer-vos que me sinto não apenas próximo de todos, mas verdadeiramente me considero um de vós. A mensagem de Fátima vista de fora parece formatada e austera. E muitos, olhando à superfície o santuário, veem apenas a dramática expressão de tantas lágrimas, demandas e promessas. Mas os peregrinos de Fátima experimentam que é muito mais do que isso. Aquilo que experimentamos é que chegamos aqui inquietos, vazios, divididos, irreconciliados ou sedentos, que chegamos aqui aos trambolhões como o filho pródigo, e que Maria realiza em nós – com que misericórdia, com que inesquecível doçura – o mandato de amor que recebeu de Jesus: «Mulher, eis aí o teu filho», «eis aí os teus filhos».

A Fátima, nós peregrinos, chegamos sempre de mãos vazias. Mas de Fátima levamos, acordado dentro de nós, um sonho. Porque Fátima ensina como se ilumina um mundo que está às escuras. Seja o pequeno mundo do nosso coração, seja o coração do vasto mundo. Obrigado, Senhora, por fazeres deste lugar uma alavanca da nossa humanidade. Um laboratório sem portas nem muros, sempre aberto para a esperança! Em ti, louvamos o Senhor que nos reergue de todas as fraquezas.