Peregrinação internacional aniversária setembro
D. Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e de Segurança
Eminência Reverendíssima
D. António Marto Irmãs e irmãos em Cristo
“Quero dizer-te que continues a rezar sempre o terço à Senhora do Rosário, que abrande ela a guerra; que a guerra está para acabar.” Foi com este apelo que Nossa Senhora se apresentou na sua quinta aparição aos pastorinhos, a 13 de setembro de 1917.
A paz tem na oração não só a sua génese e o seu mais profícuo caminho, como também a sua principal medida e a sua mais justa dimensão. Rezar, viver o encanto do encontro com o Senhor não só é a principal ferramenta para destronar a guerra, mas é o passo decisivo para se construir a paz. E nada promove tanto a configuração da nossa vida com a vida de Deus como a comunhão com Ele; e através da vida com Ele e n’Ele se plasma a terra à medida do céu.
Também o Evangelho nos convida a partilhar o singular momento de proximidade com o Senhor, vivido pela Virgem Santíssima, no encontro com o Mensageiro de Deus quando este lhe anuncia que vai ser a Mãe do Salvador. Ela acolhe a Palavra e a Palavra faz-se carne, o filho de Deus assume a condição humana.
Nunca o mundo deixe de regressar à casa de Nazaré para se reencontrar com o Mistério que, em Maria, fecundou a união entre os mais extremos opostos, entre o céu e a terra, a divindade e a humanidade e se tornou o paradigma por excelência de toda a harmonia na terra.
Aí mergulhamos na intimidade de uma comunhão de tal maneira profunda, que nos permite tomar parte em algo de grandioso que inaugura os novos tempos da salvação. Não testemunhamos apenas o anúncio de que Maria foi a escolhida para Mãe do Salvador ou o seu «sim» incondicional, mas testemunhamos também a mudança de atitude que sucede no decorrer do diálogo. Primeiro, às palavras do Anjo “conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus”, Maria, olhando para si, para a sua condição pessoal, para a sua realidade de virgem, só pode interrogar-se: «como será isto, se eu não conheço homem?” Mas à medida que interioriza as palavras do Anjo “O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra…”, Nossa Senhora descentra a atenção de si e eleva-a para Deus. O que é humanamente impossível, torna-se possível no terreno infinito da vida de Deus… Este é o passo decisivo vivido em todos os encontros de comunhão com o Senhor: uma mudança radical de perspetiva. Todo o autêntico encontro com o Senhor nos abre às possibilidades de Deus, impedindo que sufoquemos, sem esperança, dentro das nossas impossibilidades.
Todas as vezes que o ser humano procura encontrar em si mesmo a solução para os seus problemas, contando só consigo e confiando apenas nas suas capacidades, que faz ele senão uma forte violência a si próprio!? Não é, pois, de estranhar se hoje nos deparamos, mais uma vez, com uma sociedade demasiado encerrada em si mesma, sem janelas para a eternidade! Parte significativa desse enclausuramento manifesta-se numa predadora destruição da vida e da dignidade do ser humano. Embora tal devastação não ocorra somente através do uso de armas com efeitos letais, assiste-se igualmente a inimagináveis atropelos à vida e à dignidade humana, bem como à dignidade da natureza onde o ser humano tem a sua casa.
É o que tem sucedido sistematicamente em muitos países. Por exemplo pensemos em Portugal, com o flagelo dos incêndios. Não é isso uma autêntica guerra, fruto de uma dramática entropia do ser humano que se quer bastar a si mesmo e se autoproclama autossuficiente? Só onde há oração, haverá abertura a Deus e aos outros; e só onde esta abertura existir será possível construir ou reparar todos os dias os delicados alicerces da paz. A abertura de Nossa Senhora a Deus e à sua santa vontade abriu novos horizontes à humanidade, outrora bloqueados pela maldade e pelo pecado, quando Adão e Eva avistaram o fruto e, numa mera criatura, num simples objeto, quiseram ver o belo, o bom e o verdadeiro, atributos que só a Deus pertencem. No Éden, o olhar da humanidade, pelos olhos de Eva, ficou fechado na idolatria.
Mas, agora, pelos olhos de Maria, a nova Eva, a humanidade redescobre, incessantemente, a Beleza, a Bondade e a Verdade de Deus. Maria acolhe o Verbo Eterno que assume a nossa condição e natureza, contemplando n’Ele como Deus é belo, bom e verdadeiro. Em Cristo encontramos também a beleza, a bondade e a verdade da nova humanidade. Como, escreve S. Paulo na segunda Leitura: “em Cristo fomos escolhidos para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença… n’Ele fomos constituídos herdeiros, segundo os desígnios d’Aquele que tudo realiza, para sermos um hino de louvor da sua glória” (Ef 1, 4. 11. 12). É ainda em Cristo que o mundo e a história se revelam como lugares que são chamados a encarnar a salvação de Deus. Sim, o mundo só em Cristo será salvo! E, por isso, o próprio mundo brama pela presença e pela ação de Cristo nele e nós, ao dizermos “sim” ao Senhor e ao seu plano de redenção, participamos nesse processo de encarnação da salvação nas circunstâncias da história e da vida das pessoas. Como Maria, que tomou parte ativa na Encarnação do Filho de Deus, sejamos nós ativos na encarnação da redenção no mundo. Ela indica-nos o itinerário, com o acolhimento, com a admiração, com a dócil disponibilidade e com o sair.
O acolhimento é a atitude do coração por excelência porque revela, ao mesmo tempo, que existe espaço para o outro no âmago da nossa interioridade e que estamos realmente disponíveis para a sua aceitação incondicional. O acolhimento está radicado no respeito pela liberdade pessoal, que se traduz na atitude de abrir caminho à sua autoafirmação em vez de o sujeitar aos nossos próprios critérios, ou seja, traduz-se no amor ao outro tal como ele é. Como Maria acolheu o Verbo Divino no contexto da vida de comunhão com o Senhor, também nós nos abriremos ao acolhimento de Cristo quando com Ele vivermos uma vida de intimidade. Mas o acolhimento de Cristo também se revela no acolhimento dos outros — sejam eles migrantes oriundos de outras culturas ou religiões, sejam eles pessoas a quem foi roubado o direito a viver dignamente —, exigindo de nós um autêntico processo de abertura e aceitação das diferenças.
Em segundo lugar, devemos atender ao valor da admiração, da disponibilidade para nos deixarmos surpreender. São notórias as diferenças entre a anunciação a Maria e a anunciação a Zacarias. Mas onde a divergência é maior reside no facto de Zacarias viver como quem já tinha visto e vivido tudo quanto havia para ver e para viver! Por isso, permaneceu rígido e inflexível face ao inesperado, ao inaudito, não foi capaz de o integrar na sua vida, nem desfrutou da beleza da passagem de Deus por ela. Ao passo que Maria Santíssima deixou-se mergulhar no mistério divino, reagindo a esse encontro através daquele belíssimo cântico de júbilo que testemunha a sua experiência de encontro com o Senhor que é o Magnificat.
Em terceiro lugar, atentemos no valor da dócil disponibilidade. Em Maria, tal atitude traduziu-se na resposta «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra». A disponibilidade é o modo de nos sintonizarmos com a vontade de Deus. Tal vontade entra no tempo da humanidade pela porta do “sim”, sempre que ousamos proferilo face aos desafios do Senhor. Sem disponibilidade, sem docilidade, os desígnios de Deus poderão permanecer estáveis na eternidade. Mas é pelo sim de Maria, como pelo sim de cada um de nós, que esses desígnios, estabelecidos desde sempre, se tornam realidade aqui e agora.
Em quarto lugar, observemos a atitude de saída. A anunciação levou Maria a encaminhar-se em direção às montanhas, rumo a casa de Isabel, porque era lá que era necessário estar. O encontro com o Senhor suscita sempre no coração o desejo e a necessidade de ir ao encontro dos irmãos. Sair, ir pelas estradas do mundo, não é só a consequência de uma experiência marcante, nem é tão-pouco a demonstração do ardor de uma vivência espiritual. É mais do que tudo isso, como incessantemente o tem recordado o Papa Francisco: sair ao encontro dos outros é a outra face do encontro com o Senhor.
Sejamos, com Maria, coerentes com a nossa fé, capazes de nos admirarmos com as surpresas de Deus, de permanecermos disponíveis para fazer a sua vontade através do acolhimento dos outros e da atenção solícita para respondermos aos seus apelos.
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