Conheça o santo São João da Cruz e a sua vida espiritual

Reflita sobre as valiosas lições de fé do santo carmelita


Muito mais festejado do que estudado ou entendido; o santo carmelita traz contribuições tão valiosas ao caminho de santificação cristã que mereceu, por parte da Igreja, o título de Doutor Místico.

Costumam-se decifrar grandes figuras do passado pela leitura atenta de sua biografia e de suas obras. Isso parece que funciona de modo geral, mas não se aplica de modo algum à Cristo e aos seus santos. O conhecimento de Jesus sempre será imperfeito e inexato se, para aquele que O procura, Ele permanecer como uma figura histórica e afastada no tempo. Faz-se necessário um encontro pessoal com Aquele que é, foi e será Santo por toda eternidade. Para começar a conhece-Lo e ir se aprofundando neste conhecimento durante toda a nossa vida.

Com um Santo, não poderia ser diferente. Eles nos atraem e se deixam conhecer com um único e grande objetivo: ajudar-nos a aproximarmo-nos cada vez mais de Deus. Tornam-se, portanto, mais do que imperfeitos objetos de estudo, passam a ser amigos e verdadeiros irmãos que nos orientam e nos encaminham para o pai.

Dito isso, além de alertar para a revisão de nossas “devoções” a santos para, os quais, somente pedimos isso ou aquilo, espero que tenha ficado claro que não se encontrará aqui um resumo da vida de São João Cruz ao estilo ”Wikipedia”, nem, muito menos, um resumo das suas obras para a catequese de algum lugar. Apresento uma pequena visão de um irmão muito amado e corrijo algumas leituras equivocadas que fazem a respeito de seus ensinamentos.

São João da Cruz não é para iniciantes
Confesso que, do dia em que comprei o volume único de suas Obras Completas até começar a entender seus escritos, passaram-se mais de 15 anos. No caminho da santidade ou, para subir o Monte Carmelo usando uma metáfora joanina, é impossível começar pela mística. E São João da Cruz é o doutor místico. Suas poesias se revelam lindas como o Cântico dos Cânticos, e tão enigmáticas quanto o livro bíblico. Sua prosa, parece se contorcer em um único tema, a noite espiritual da alma, tão incompreendida quanto a poesia.

É preciso lembrar que, seus escritos tem um claro objetivo: ajudar aqueles que se encontram no final da vida ascética a progredir rumo a união plena com Deus, ou mística. Foram dedicados prioritariamente para os seus irmãos carmelitas, não para o público em geral, e sempre que ele fala de “iniciantes” não se trata, de forma alguma, de recém convertidos, e sim, para aqueles que apresentam os primeiros traços de quem se inicia na contemplação infusa de Deus.

”Final da vida ascética, mística, contemplação infusa”; se tudo isso soou um pouco estranho é porque para se chegar a São João da Cruz, precisamos passar pela mestra em oração e doutora em espiritualidade Santa Teresa de Jesus. Somente entendendo o caminho espiritual do Castelo Interior de Santa Teresa se conseguimos situar São João da Cruz com exatidão, pois, seus escritos se dirigiam para aqueles que já viviam sob as orientações espirituais do carmelo reformado teresiano.

Sendo assim, é necessário explicar que foi Santa Teresa quem delineou com clareza o caminho de perfeição da alma até a união completa com Deus e, para resumir ao extremo, podemos dizer que este trajeto é composto por um percurso de 7 moradas sucessivas, onde as 3 primeiras são conhecidas como via ascética e as 4 últimas são a via mística. Essas vias compõem um único caminho, este caminho é progressivo e, portanto, não se chega às moradas mais interiores sem passar pelas mais exteriores ou, em outras palavras, ninguém vai direto para a mística sem passar pela ascética. Assim, os “iniciantes” dos escritos de São João da Cruz são experientes na vida espiritual e de oração, já percorreram 3 moradas interiores e só são chamados assim, porque, agora se iniciam na segunda parte, a via mística.

A contribuição de São João da Cruz
Neste caminho de santificação, São João da Cruz nota que “faz pena ver (…) (as) almas trabalharem e se fatigarem, inutilmente, com grande esforço, e em vez de progredir, retrocederem, porque pensam achar proveito naquilo que (na realidade) lhes é estorvo.”

Deste modo, seus tratados espirituais se concentram em esclarecer aos diretores espirituais em primeiro lugar, e aos que percorrem o caminho em segundo lugar, a entender onde estão, como estão e quais os passos que devem ser dados. Mas também, os passos a serem evitados para realmente se progredir na via de santificação da alma com constância. Pois, como lembra o santo, “ninguém ignora que, no caminho da perfeição, não ir adiante é recuar; e não ir ganhando é ir perdendo.”

Neste caminho de união total com Deus, é imprescindível o despojamento de si mesmo até a completa desnudez espiritual da alma. Aquele que deseja a santidade, ensina São João, não pode ser plenamente de Deus enquanto ainda possuir qualquer coisa de seu. Ou, como bem sintetiza: “para chegares a possuir tudo, não queiras possuir coisa alguma.”

Aridez espiritual não é Noite Escura da Alma
Por último, mas não menos importante, uma correção: é comum na vida ascética, ou seja, nas 3 moradas iniciais do caminho espiritual, vivermos momentos de desânimo, perda de energias e grandes dificuldades para se manter a vida de Fé, a frequência e fervor na oração. A isso tudo dá-se o nome de aridez espiritual e é um fenômeno tão complexo e multifatorial que fugiríamos do tema o desenvolvendo aqui.

Mas, o que precisa ficar claro é que nada disso tem haver com a noite escura da alma como foi delineada por São João da Cruz. Essa é uma etapa da vida espiritual vivida muito adiante, já no meio da vida mística, na quinta morada. Ou seja, aridez espiritual acontece nos inícios da vida espiritual, noite escura da alma é um fenômeno que, se ocorrer, ocorre somente com os adiantados ou proficientes da via unitiva ou mística como se referia São João.

A noite escura é uma purificação da fé daquele que já a possuiu em grau muito alto. Isto é, durante todo o caminho espiritual, como forma de orientar o caminho e incentivar a aplicação da alma, Deus promove uma série de consolações e benefícios espirituais fortalecendo as virtudes infusas e as virtudes teologias da fé, da esperança e da caridade. Tudo isso é sentido e cada vez mais perceptível. Mas, como explica São João da Cruz, “no alto estado de união (…), Deus não mais se comunica à alma mediante (…) visão imaginária, ou semelhança, ou figuras. Fala-lhe de boca a boca, isto é, a sua essência pura e simples, que na efusão do seu amor é como a própria boca de Deus, une-se à essência pura e simples da alma.”

Esse contato, por se dar de forma tão pura e direta, passa-se de tal forma desapercebido pelos sentidos ou potências de quem o recebe que dá a impressão de que, Deus não se comunica mais com a alma, afastando-a de sua luz e mergulhando-a em completa escuridão. Embora, esse contato seja extraordinariamente mais efetivo que todas as comunicações anteriores, quem o recebe não o percebe, como se estivesse numa noite muito escura e, somente pela fé, pode acreditar que Deus continua próximo, atuando e elevando a alma até Si. Trata-se da última purificação da fé antes do desposório espiritual da sexta morada.

Essa noite escura e a grande alegria de quem a vive pois sabe que Deus está completando a obra de santificação de sua alma, é muito bem delineada nos versos iniciais de uma das poesias de São João compostas quando se encontrava na prisão em Toledo. Ela se intitula Cantar da Alma que Se Alegra em Conhecer a Deus pela Fé:

Aquela eterna fonte está escondida,
mas bem sei onde tem sua guarida,
mesmo de noite.

Que, por meio da maravilhosa comunhão dos santos, possamos trilhar esse caminho rumo ao pai na companhia de São João da Cruz, mesmo de noite.