O valor da fidelidade a Deus e a evangelização

Em uma história tão impressionante quanto verdadeira, Mel Gibson acerta mais uma vez e mostra o valor da fidelidade a Deus

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Desde a Paixão de Cristo (2004), todos aguardavam um novo filme cristão de Mel Gibson. Felizmente, podemos dizer que seu filme Hacksaw Ridge (lançado no final de 2016), e que chegou ao Brasil no início do ano com o título ‘Até o último homem’, não decepcionou.

Para produzir um filme com temática “cristã” há, pelo menos, três grandes obstáculos a serem vencidos: buscar o espiritual e fugir do espiritualóide; produzir uma história consistente; e torná-la atrativa também para os que não são cristãos.

A partir do que vemos, falar do que não vemos
Tratar de temas espirituais é muito complicado. Como revelar, por meio do que vemos, aquilo (ou Aquele) que não vemos? Filmes com temáticas cristãs raramente conseguem fazer essa primeira transposição. O resultado? Uma devoção que beira a pieguice ou alienação. O cristão, retratado como homem de fé, geralmente se parece com uma mistura de alienado, louco e fanático.

Nada disso se aplica ao soldado Desmond Doss em ‘Até o último homem’. De caráter centrado, firme e consciente, não há pessoa que o questione por suas decisões no filme, que não receba respostas consistentes. É um homem maduro e seguro de sua fé e princípios, que não utiliza Deus como desculpa para suas ações. Pelo contrário, Deus é o farol que ilumina seu caminho, mas não interfere ou obriga a nada. Vemos, assim, um homem consciente de que precisa trilhar um caminho, consciente de que esse caminho não se vive (ou se atravessa) sozinho, mas, sobretudo, consciente de que é livre e responsável por suas decisões.

“Por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si”
O segundo perigo à produção de filmes cristãos é construir histórias fracas e inconsistentes. Até onde Deus age, até onde o homem deve agir e esperar em Deus? Aristóteles, na sua obra poética, deixa claro que a história deve ser conduzida por ações (e só depois vêm as palavras), e é esse encadeamento de ações que produz um bom roteiro dramatúrgico. A constituição dogmática Dei Verbum diz que Deus também se revela assim, “por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si”.

Mel Gibson consegue sair dessa sinuca produzindo uma história verdadeira (e não “baseada em fatos reais”, portanto, romanceada). Assim como ‘A Paixão de Cristo’, ‘Até o último homem’ transpõe, o mais literalmente possível, acontecimentos reais. O mérito do diretor fica por conta de não fazer uma transposição medíocre, mas de uma beleza e sensibilidade artísticas ímpares, desde a citação de Isaías (Is 40, 28-31), no início do filme, até os trechos de documentários que, cuidadosamente, terminam com o soldado Doss atribuindo todas as suas ações à inspiração de Deus. Merecidamente, o filme foi indicado ao Oscar de melhor diretor, melhor filme, melhor ator; e ganhou o Oscar 2017 de melhor montagem e de melhor mixagem de som.

Vencendo o ódio
A terceira vitória que um filme cristão deve conseguir é a mais difícil de todas: vencer o ódio permanente e crescente contra o cristianismo no mundo e ser divulgado e exibido normalmente. Tudo bem falar de qualquer coisa, desde que não seja Deus. Nesse sentido, Hacksaw Ridge, apesar de ter uma leitura clara e manifestamente cristã, consegue atrair os olhares dos que não querem ver a fé que move Desmond Doss, utilizando o rótulo de “Opositor Consciente” que é dado ao soldado. Como os EUA vivem a uma década de lutas internamente, com opiniões a favor e contra o envio de soldados a países como o Afeganistão, a “oposição consciente” de Doss agrada àqueles que são contra o envio de tropas para qualquer lugar. Isso, por si só, ajuda à penetração do filme em setores completamente avessos à temáticas cristãs.

Não posso deixar de notar, no entanto, que o próprio Desmond Doss é bem claro ao tratar sobre o tema, dizendo que se sentiria culpado se não fosse para a guerra, e que via a necessidade dela naquele momento. Só percebeu que poderia contribuir salvando vidas, e não as tirando.

Fidelidade a toda prova
Se eu buscasse reduzir ‘Até o último homem’ a uma única palavra, esta seria “fidelidade”. Desmond faz um voto de nunca mais pegar em uma arma e é fiel às últimas consequências. Todos procuram fazê-lo desistir de seu propósito; seus companheiros e o sargento por agressões físicas e verbais, altas autoridades do exército explicando que Deus abre exceção para o “não matarás” em uma guerra, sua noiva questionando se ele estava fazendo realmente a vontade de Deus ou a sua própria, e finalmente a própria guerra quando seu pelotão é escorraçado da escarpa Hacksaw. Esse é, para mim, o segundo momento chave do filme. Chegaremos lá.

O primeiro é quando a realidade se torna esmagadora: ou ele assume a acusação de insubordinação e é expulso com desonra do exército ou nega e vai para a penitenciária. Em qualquer situação, seu objetivo de servir na guerra como médico já estava perdido. Ele resolve manter-se fiel à sua promessa e temos, através de seu pai, a primeira intervenção (ou confirmação) de Deus em sua história. Até aqui, agiu o homem; e quando o homem não desiste e não pode seguir adiante por suas próprias forças, Deus age. A fidelidade de Doss é recompensada.

O segundo é aquele que já citei: depois de tomar o topo de Hacksaw, seu batalhão é escorraçado pelos japoneses e todos fogem. Nesse momento, Doss trava um grande diálogo com Deus em duas linhas: “O que Você quer de mim? Não O entendo”. Deus responde como respondeu a Madre Teresa de Calcutá. Para ela, Ele disse: “Tenho sede!” através de um mendigo numa estação de trem. Para o soldado Doss, Ele responde por meio de seus irmãos feridos, gritando “Socorro! Socorro!”.

Finalmente, o soldado Doss realiza o seu chamado, sua fidelidade a um propósito se transforma em ações concretas, e ele realiza o que se propôs: salvar vidas. O homem inspirado por Deus é provado, adquire méritos por sua fidelidade e realiza sua missão. A todos que trabalham pela salvação dos homens (seja física ou espiritual), vai permanecer o seu bordão: “Senhor, por favor, ajude-me a trazer mais um!”.

Flávio Crepaldi