Como acabamos de ouvir, irmãos caríssimos, Maria, Nossa Senhora, logo que concebeu Jesus, acorreu a uma povoação das montanhas da Judeia, para visitar e ajudar Isabel, sua parente e grávida também. Trata-se da Visitação da Virgem a Santa Isabel, como São Lucas a recorda no seu Evangelho e nós meditamos no Rosário, ao segundo mistério gozoso. Já este facto nos deve levar a considerar a importância do assunto, que, uma vez começado como ouvimos, há de prosseguir nos que aqui estamos.
Uma vez começado como ouvimos… Como ouvimos, e de cada vez primeiramente. Trata-se dum momento fundante e fundamental, na religião de Cristo. Aludindo a Ele, levado no ventre materno, fala também de nós, no seio da Santa Madre Igreja, que nos transporta ao encontro dos outros, carentes de visita, serviço e companhia.
Porque a Visitação de Maria, levando Jesus a Isabel, tem sido uma constante na vida da Igreja, tantas vezes manifesta. E, como também sucede, quem recebe Maria torna-se visitador por sua vez, continuando o movimento salvador.
Assim o perceberam e cumpriram os Pastorinhos de Fátima. E o pouco tempo que lhes sobrou na terra, a Francisco e Jacinta, não foi outra coisa senão um exercício de Visitação, pelo testemunho que ninguém calou; e mesmo no sofrimento, que os não calou a eles.
Caríssimos irmãos e muito especialmente vós, que viestes a pé, de longe e mais longe, sob chuva ou sol: Assim mesmo cumpristes a Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, na dupla condição de as imitardes a ambas.
Até aqui, peregrinastes como Maria, não para as montanhas da Judeia, mas para o lugar bendito desta serra em que estamos. E trouxestes convosco o mesmo Jesus, que vos deu força e ânimo, para continuar estrada fora e para apoiar os outros, quando precisavam duma palavra de alento ou dum braço de amparo. Mas, agora aqui, estais e estamos todos como Isabel então, recebendo de Nossa Senhora o mesmo Jesus que ela nos oferece.
Depois, voltareis com Ela e com Ele, para continuar a Visitação junto dos vossos familiares, vizinhos e companheiros de terra, trabalho e convivência: para que tenham vida, na sua fonte inesgotável, que é o próprio Deus. Em Deus, unicamente, que nos visita em Jesus, trazido por Maria. Deste lado estamos para receber e deste lado estamos para oferecer Jesus ao mundo, o nosso mundo.
Deixai-me dizer-vos, caríssimos peregrinos, o muito que vos estimo e admiro, pela coragem de sair de casa e fazer-se à estrada, persistindo, rezando e ansiando por chegar aqui, como finalmente estais. Como Maria a caminho da casa de Isabel, fostes transportados por sentimentos de solidariedade e compaixão, nas intenções que trazíeis e mantendes. Por algum familiar ou amigo, que espera saúde, trabalho ou paz. Por motivos coincidentes, em relação à paz no mundo e a tudo o que a contraria ou demora.
Também foram sentimentos assim que trouxeram Maria aos Pastorinhos, evidenciando-lhes a presença celestial que tem com Cristo em Deus; e a faz partilhar inteiramente da misericórdia do Criador de todos em relação a cada uma das suas criaturas. Daí as recomendações aos Pastorinhos: que se convertessem, por si e pelos outros; que rezassem pela paz e advertissem da guerra; que mostrassem em si mesmos o que devemos ser todos, como crianças e filhos diante de Deus, simples e fraternos diante dos homens.
Por isso valeu Fátima, há quase cem anos. Por isso vale agora, na mesma razão. Temos muitas razões para lhe dar crédito, como o fez a autoridade eclesiástica em 1930 e os sucessivos Papas em pronunciamentos e visitas a este santuário – como o Papa Francisco no próximo ano. A verdade garantida de Fátima está na sua coincidência com a própria verdade evangélica. E a verdade essencial do Evangelho está nas obras essenciais que ele produz, como Cristo não deixou de esclarecer: «as obras que o Pai me confiou para levar a cabo, essas mesmas obras que Eu faço, dão testemunho de que o Pai me enviou» (Jo 5, 36).
Compreendamo-nos, irmãos, peregrinos de corpo e alma, na dimensão perfeita que a Visitação há de ter, hoje e em toda a vida. Cristo visita-nos da parte de Deus, começando logo no ventre de Maria, e assim levado até Isabel. E prossegue agora, sempre o mesmo Cristo, na vida da Santa Madre Igreja, alargando a obra começada: para ajudar, recriar, salvar a humanidade inteira, em cada um de todos. Onde depararmos com sinais desta Visitação salvadora, temos a garantia da sua verdade. É essa a maravilha e o milagre de sempre. Foi esse, muito principalmente, o milagre de Fátima. Como continua a ser.
Impressiona-nos o modo como os Pastorinhos perceberam a Visitação da Senhora e que, mais do que para contemplar por fora, era para comungar por dentro nos sentimentos de Cristo e sua Mãe. No pouco tempo que Francisco e Jacinta permaneceram neste mundo, tudo foi vontade de salvar os outros pela entrega de si próprios, atingindo, ainda crianças, uma tão grande maturidade de fé e de obras.
Corresponderam heroicamente ao pedido de se oferecerem pela salvação de todos, expressando-se quase como São Paulo, quando se incluía inteiramente na obra de Cristo, com palavras tão fortes como estas: «Agora, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja» (Cl 1, 24). Por isso mesmo puderam ouvir estas palavras seguras: «Deus está contente com os vossos sacrifícios».
Assim dito e sem mais, pode parecer excessivo. Mas quando vemos os Pastorinhos, visitados por Maria e relembrados de Jesus, a rezarem e a sacrificarem-se pelos pecadores, a pedirem por todos, doentes, soldados e muitos outros, sem esquecer o Santo Padre e a Igreja… Quando reparamos verdadeiramente em tudo isto, a conclusão só pode ser uma: aconteceu aqui, vai para um século, o que começou há dois milénios no Israel de então – a Visitação de Deus, na obra de Cristo, marianamente envolvida.
E, se é verdade que «contra factos não há argumentos», argumentemos agora com a nossa correspondência, partindo mais fortes e comprometidos, para que a obra continue, na Visitação que faremos. Não foi fácil o caminho da jovem Maria, de Nazaré à montanha da Judeia. Não foi fácil o caminho dos Pastorinhos, que chegaram até ao âmago sofredor do mundo. Não será fácil para nós, transformados em “Visitação” também. Mas é este o caminho de Cristo, da sua Páscoa e da sua Mãe. Assim o sabemos – e não queremos outro.
Ouvi um dia alguém dizer que, quando sai de manhã para o trabalho, vai desfiando as contas do Rosário e especialmente atento ao mistério da Visitação. Pede a Deus que assim seja consigo, como foi com Maria: que Cristo siga nele e através dele se ofereça em cada encontro com os outros, na rua, no trabalho e em casa, onde for mais preciso e mais urgente.
Bela oração, na verdade, que podemos fazer nossa, nas circunstâncias que vivermos ou criarmos. Será esta a melhor maneira de nos credibilizarmos como os Pastorinhos, com Maria em Cristo. Sem esquecer o realismo evangélico das palavras de Jesus: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35).
Na verdade, longe ou perto, a Visitação continua!
+ Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa
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